Duas Xícaras – uma crônica de família
Memória
Meus tios-avôs, já velhinhos, viviam no Guarujá numa casa simples em rua de terra. Saíam pouco. Tinham receio de tropeçar nos passeios irregulares ou escorregar e cair nas valas que recolhiam a água da chuva.
Glieb, meu tio-avô de 83 anos, passava seus dias sentado na varanda com um jornal ou livro nas mãos, segurando-o sem ler, olhando o jardim que deixava crescer livremente e falando pouco e devagar. Titia reclamava, muitas vezes irritada, que ele já não se lembrava de muita coisa e não entendia quase nada do que se falava em seu redor.
Um dia, logo que cheguei, Glieb levantou-se e declarou que tinha que ir ao mercado comigo. Fomos. Devagarinho, parando para examinar cada folhinha e admirar cada jardim, ouvir cada passarinho, falar com cada gato no muro e cada cachorro que latia, íamos observando as nuvens e as pipas no céu, caminhando com dificuldade as três quadras que nos separavam do armazém.
Chegando na loja, olhou as prateleiras até achar a seção de louças. Escolheu cuidadosamente uma grande xícara de chá – daquelas primeiras que apareceram de vidro opaco – e levou-a até o caixa. Pediu para embrulhar para presente.
Voltamos para casa. Quando Titia abriu a porta, Glieb, beijando sua mão, majestosamente entregou-lhe o pacote. Duas grossas lágrimas rolaram pelas faces de Titia enquanto abria o embrulho. E ela me disse baixinho, surpresa: “ele se lembrou que hoje é meu aniversário…”.
Lembrança
Como não jantava havia anos, Titia Marussia, minha tia-avó, gostava de tomar café com leite no final do dia. Todas as tardes, lá pelas quatro horas, sentava-se na cozinha e gloriosamente preparava sua bebida predileta. Não importa o que houvesse acontecido - seu café com leite era sagrado. Acho que esta é uma das imagens mais fortes que tenho dela: sua imperturbabilidade.
Titia gostava de arrumar a mesa, quase sempre com uma toalha bordada por ela mesma e, ainda que os pratos não fossem da mesma cor, nunca faltava um raminho de flores do jardim - alegria, hibiscos ou margaridas - para enfeitar a jarrinha de leite que ela usava como vaso. Assim, ela me dizia, “enfeitava a vida”.
Quase aos 90 anos foi viver na casa de idosos, levando também sua louça. Eram algumas peças de porcelana delicada, chinesa, branca com vivo creme e pequeninas florzinhas. Quando ela faleceu, só fiquei com suas fotos; afinal ela nunca se prendeu a nada e suas pessoas queridas estavam lá, nas fotos que eu havia prometido guardar.
Muitos anos mais tarde, visitando o lar de idosos onde Titia viveu, por ocasião de um bazar, deparei-me com uma xícara, de porcelana delicada, chinesa, branca com vivo creme e pequeninas florzinhas. Somente esta havia sobrado da louça da Titia. Estava lá sozinha escondida num canto, única. Apesar de envelhecida pelo tempo e empoeirada, reconheci-a imediatamente e não resisti. Senti que tinha encontrado a Titia novamente. Comprei-a imediatamente e levei-a como um tesouro para casa. Onde está até hoje, enfeitando a janela-vitrine bem pertinho da estante de Titia que está na sala.
Espero que tenham gostado.beijos,
Vicky